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OBRAS IMPORTANTES DE GUIGNARD EM DESTAQUE
COM A ANÁLISE DO PROFESSOR PIERRE SANTOS
Família na Praça, 1940, 001-40, osm, 47 X 39 cm.
Este é o quadro que, à época, alcançou maior notoriedade e o tornou definitivamente famoso. Aí, sem dúvida, o pintor chegou à definição plástica pretendida dentro da temática, bem como ao resultado ideal, para si, da conveniente expressão da brasilidade, para mostrar aos olhos do mundo o que era a sua Nação. Iria procurar a realização da mesma expressividade em outros temas e lugares, para que sua obra se completasse.
Posando para o pintor, a família toda – pai, mãe e quatro filhos – aí se encontra, um ainda de colo com os seus seis ou sete meses de nascido, segurando à sua frente algo como uma revista. Oferecem-se num friso simétrico à observação do pintor, com dignidade e respeito, como se estivessem antes à frente de um desses fotógrafos de logradouros públicos chamados lambe-lambe, pois para eles o efeito seria o mesmo.
Nem de longe imaginariam que aquele instante seria eternizado e acabariam sendo vistos no mundo inteiro e sempre. Claro que o sucesso da pintura repercutiu na vida da família, sobretudo do pai, que foi procurado, após a obra ficar célebre, por repórteres e amigos, que os cumprimentaram: por terem sido os modelos, todos os componentes da família foram também ‘badalados’. Todavia, não creio tenha sido a pose combinada. Por distração, nunca falei com o mestre a respeito; mas acho que tenha sido feita por acaso. Em amena manhã de um domingo qualquer, os pais resolveram levar os filhos a passeio, como sem dúvida faziam de vez em quando, para dar-lhes pipoca, algodão doce ou outra guloseima. Saíram da casa simples, onde moravam, andaram alguns quarteirões e chegaram à praça do bairro. Casualmente, Guignard lá estava com material de pintura, certamente tencionando pintar aquele logradouro, quando viu a família ali chegando; ficou encantado com o conjunto que assim se formava e pediu ao chefe para todos eles fazerem uma pose, a fim de pintá-los. O homem, mesmo um pouco desconfiado, aceitou. O pintor então explicou que haviam caído do céu, pois eram exatamente os modelos que procurava e não teriam de pagar nada por isto, era só posar. Se bem conheci Guignard, certamente disse que lhes daria uma gratificação, ao que o homem teria respondido que não era preciso, mas, mesmo assim, após a pose, deve ter posto alguns trocados no bolso do paletó daquele chefe de família, dizendo que era para comprar balas para os garotos. O artista estava consciente de que tinha somente aquela oportunidade para levar a cabo aquela pintura, além do que não podia ser uma pose demorada. Por conseguinte, era preciso apressar-se.
Escolhido o local adequado, dispôs devidamente a família, marcou o enquadramento da cena e se deteve mais demoradamente na fixação das seis figuras, inclusive definindo bem as fisionomias, o que levou talvez uns quarenta minutos, se tanto. Levou mais uns vinte minutos para decidir sobre o esquema das cores e o restante faria sem modelos. Imagino a vontade de brincar dos meninos, no que o artista, sentindo a ansiedade e a inquietude deles, dispensou-os, continuando sozinho o trabalho. Como o sol estava escondido atrás de nuvens, não havia sombras para pintar, o que facilitou um pouco a tarefa. Além disso, devia estar fazendo um pouco de frio, porque todas as pessoas presentes na cena, modelos e transeuntes ao fundo, vestem paletós ou camisas de mangas compridas. Para valorizar a disposição em friso do plano de frente e a sustentação plástica da retaguarda, o pintor fez com que um grande ziguezague corresse toda a superfície da esquerda para a direita. Os ângulos que compõem este ziguezague são todos agudos e em número de sete (sem contar os dois meio ângulos, um em cada lateral). Quatro deles têm os vértices na parte superior, ou seja, no encontro do poste branco, à esquerda, com o globo; na glabela do pai; no alto dos cabelos da mãe; e no encontro das folhas da copa com o tronco da árvore à direita. Três deles com seus vértices na ponta dos pés esquerdos dos garotos. Os dois bancos, um de cada lado, marcam o início e o fim da leitura composicional em friso, o qual se vê apoiado, com inteira propriedade, para a leitura composicional em profundidade, pelo afastamento rítmico dos planos em seu conjunto. Este movimento se inicia com os dois canteiros do plano de frente, o da esquerda ligeiramente menor, retomado pelas aleias assimétricas, que levam nossa vista aos dois canteiros maiores, à calçada mais próxima transitada por algumas pessoas, à rua por onde um motociclista avança pela mão direita e pela mão esquerda um automóvel vai saindo de cena, à outra calçada mais transitada que a primeira, e, finalmente, às fachadas das casas ao fundo, bem movimentadas e coloridas, modulando com suas tonalidades todos os restantes campos pictóricos. As fachadas centrais estão bem aquecidas por um alaranjado, que empurra os figurantes ao nosso encontro e ecoa, à esquerda, no transeunte, na faixa inferior da casa amarela e no tufo de flores brancas e laranjas do canteiro à esquerda; no centro ecoa com sutileza nos lábios e na gravata do pai, nos lábios e enfeite de cabelo da mulher, na mancha que está na publicação segurada pelo bebê, na calça do garoto central e nos sapatos da mãe, e, pela direita, nos frutos da árvore, na única sombrinha que aparece no quadro, no rosto e nas pernas da mulher bem à direita e, enfim, no tufo de flores igual ao primeiro, à direita. Tratamento semelhante foi dado às demais cores: verde, roxa, marrom e amarela, que encontram suas correspondentes pelo quadro afora, num verdadeiro concerto cheio de sonoridade. Corajosamente, Guignard reservou para o branco uma função que de comum não lhe é dada: a de garantir a dinâmica da composição, uma vez que toda a movimentação dos transeuntes, ao fundo, nos é passada pela cor branca, enquanto à frente é também o branco que, de maneira sutil, movimenta da esquerda para a direita o ziguezague em que as formas estão dispostas. Curiosamente, todos os canteiros estão contornados por barras de ferro dispostas em arcos contínuos, menos a parte de canteiro que fica atrás do garoto central. Descuido do pintor ou ali não havia mesmo essa barra? Isto, porém, é uma questão secundária, pois o importante é essa linguagem subjetiva, que faz o quadro transbordar de significados, como o modo de ser, de pensar e de reagir do brasileiro, o tipo de vida, a capacidade de adaptação a todas as limitações que as circunstâncias impõem, enfim, a sua idiossincrasia em face da realidade. Vemos na pintura não apenas uma praça apinhada de gente, mas ainda a vivência situacional profunda e exclusiva do brasileiro, em indelével caracterização nacional e até bairrista. Acredito que este quadro foi pintado num trecho da Avenida XV de novembro, em Petrópolis.
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