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OBRAS IMPORTANTES DE GUIGNARD EM DESTAQUE
COM A ANÁLISE DO PROFESSOR PIERRE SANTOS
Santa Cecília, 1933, 001-33, ost, 60 X 50 cm.
O primeiro deles é o que leva o título de Santa Cecília e sua referência é a Santa Padroeira dos Músicos, patrícia romana da família dos Metelos, filha de influente senador romano da época. A jovem, por ter aderido ao rito cristão – coisa absurda e acintosa em face do império dos Césaris – foi martirizada entre os anos 176 e 180, tornando-se um dos mais importantes mártires daqueles dois primeiros séculos do Cristianismo e sendo sepultada pelos amigos de fé na basílica da Catacumba de São Calixto, em cuja entrada se encontra a famosa Cripta dos Papas, onde foram inumados alguns dos primeiros Pontífices da Igreja Católica.
O mestre poucas vezes falou sobre esta pintura, mas acredito que a tenha realizado a pedido de Amalita Fontenelle, então bela estudante de música, que despertou em nosso artista grande interesse. Cortejou-a com elegância, como era de seu feitio sempre que se apaixonava, durante alguns anos, fazendo-lhe inclusive belo álbum com mais de cem páginas, repleto de significativos e românticos desenhos, hoje conservado no acervo do Museu Casa Guignard de Ouro Preto. Todavia, a moça só gostava dele por amizade, pelo que nenhum romance entre eles chegou sequer a nascer.
Certamente, Amalita justificou aquele pedido, explicando que a Mártir era a Santa de sua devoção e entregou-lhe a cópia de um texto no qual estava resumida a história de Santa Cecília, extraído do Livro dos Santos. Guignard manteria este texto entre os seus guardados para o resto da vida e, na época, certamente o estudou com aplicação e fez alguns esboços na tentativa de formar-se ideia do que pretendia fazer, no caso daquela pintura solicitada por Amalita. Tivesse sido uma encomenda de alguém e mesmo a preço alto, não teria ficado tão preocupado. Mas aquela não era uma encomenda qualquer; aliás, nem era uma encomenda, mas sim, um desejo travestido de sugestão, que lhe chegava da parte da mulher naquele instante amada, o que tornava tudo mais grave e preocupante para ele, pois, naquele período, se Amalita, no lugar do quadro, tivesse demonstrado o desejo de possuir um pedaço da lua, acho que ele daria um jeito de buscá-lo, para presenteá-la. E pensar que a moça sequer se tocou com a profundidade e a extensão daquele bem querer!...
Realmente, nosso mestre andava muito preocupado naqueles dias por causa daquela pintura, pois nunca na vida tinha querido tanto ‘fazer bonito’, quanto daquela vez. Ora, tratava-se de quadro que, por ser diferente daqueles a que estava acostumado (natureza morta, paisagem, retrato...), demandava maior preparação. Por causa disso, como sempre fazia quando se sentia com alguma dificuldade semelhante, foi fazer uma visita ao seu amigo e, de certa forma guru, Ismael Nery, com quem falou sobre o quadro que pretendia fazer. Nery, sem dúvida, escutou-o com seriedade e depois lhe passou uma série de sugestões as quais em grande parte seriam por ele aproveitadas, pois o aspecto do quadro, quando nada, sugere que a armação do motivo foi concebida por Guignard durante aquela conversa, em cuja ‘ambientação’ é perfeitamente sensível e detectável a influência do notável pintor onírico que seu amigo era. Na verdade, a composição inteira do quadro está plena de uma atmosfera algo surrealista ou, pelo menos, metafísica, deixando antever a que resultados oníricos chegaria o nosso pintor, em alguns quadros quase que simultâneos, apenas poucos meses posteriores a este sob análise, realizados por sugestão de seu amigo surrealista, o que será mais adiante explorado nesta pesquisa.
Embora nosso artista tivesse gasto vários dias na reflexão e na armação desta pintura, a execução dela em si não lhe tomou, acredito, mais do que três ou quatro seções, pois já tinha plena consciência do que pretendia realizar. Santa Cecília aí está, majestosamente serena, os olhos fechados, voltada para dentro de si mesma, extraindo lá do imo, como de miraculosa fonte, os acordes de uma música em surdina, compassiva e tocante, que preenche todo aquele ambiente, qual se fosse uma nova atmosfera, alimentando as almas ouvintes. Seu corpo ocupa cerca de um terço de toda a superfície do quadro e é posto em completo destaque por uma faixa virtual em forma de arco, que desce de alto a baixo, desde a cabeça laranja da figura masculina, em cima e no fundo, passa pela da mulher, também laranja, abaixo de si, pelo seio direito e umbigo da mesma figura e vai até às mãos da Santa, enquanto a figura menor da faixa central, de cabelos da mesma cor das outras, a cabeça descansando na mão direita, faz aí a função catalisadora de todas as moções formais da composição. Completam o ambiente, nos planos da retaguarda, blocos de pedra, como tirados de um rochedo partido, deixando-nos entrever lá no alto, à direita, uma paisagem meio estranha, como se fosse um mar acalmado pela música, encostado num iceberg ou numa pesada nuvem; e, nos planos de frente, um piano com suas teclas bem aparentes sendo tocadas; acima dele, escorado em seu suporte, um conjunto de folhas com pautas musicais, que aí estão não para serem lidas, pois a Santa sabe a música de cor e toca com os olhos fechados, mas por outro motivo, como veremos.
Guignard figura Santa Cecília a dedilhar um teclado de piano. Piano?! Mas como, se a Santa viveu no segundo século de nossa era e piano é invenção do início do século XVIII?! Mas fez e sabia disto. O interessante é que a escolha deste instrumento nem de longe chega a significar ‘forçar a barra’, pois teve para tal decisão duplo motivo: primeiro, porque, segundo ensina o Cristianismo, para os santos não existem condicionamentos temporais e Santa Cecília pode tocar hoje um piano, como poderá executar qualquer instrumento, que for inventado pelo futuro afora; segundo, porque pretendia fazer uma homenagem a alguém e esse alguém era precisamente a mulher a quem amava na época: Amalita. A Mártir sempre aparece nos quadros ao lado de harpa, flauta, órgão, harmônio, violino ou cravo, e raramente ao lado de piano. Ora, de todos os instrumentos ao lado dos quais é costume figurá-la, os únicos que existiam no tempo dela eram as milenares harpa e flauta, porque o órgão foi criado no IIIº século, o cravo por volta do ano 1300, o violino no final do século XVI e início do XVII e o harmônio em 1843. Portanto, se figurá-la junto com instrumentos que não existiam ao seu tempo fosse errado, Guignard não estaria errado sozinho, mas pelo menos 80% dos pintores, que a fizeram com instrumentos então inexistentes, também o estariam. Afinal, Guignard queria fazer uma homenagem a Amalita e escolheu para servir de modelo ao que foi pintado no quadro o instrumento que pertencia à moça, diferente de todos quantos havia no Rio de Janeiro naquela época.
A propósito, aqui no primeiro plano é gritante a presença da jovem, pois o instrumento era mesmo o dela, que sobe por detrás do teclado em três lances de cascata até o tampo, que lhe esconde o interior, revestido de tábuas corridas, onde o artista pôs assinatura e data. Assim, era o único piano da cidade a ter semelhante cobertura – o que perfeitamente o identifica. Como se não bastasse, ali no alto da página encostada no suporte de leitura, na qual está escrita a partitura da música em execução, logo acima das pautas musicais, está a assinatura de Amalita, feita com pincel de pouquíssimos pelos para imitar a assinatura dela, escrita a caneta de pena muito fina e o artista fez questão de copiá-la tal e qual. Tudo indica que ele teria feito ou, pelo menos, começado a fazer o esboço da tela na casa da jovem.
Mas a coisa não para aí. Com muita sutileza, Guignard fez correr por cima do grande caderno de partituras, encostado em forma de telha em seu suporte, uma fita, na qual escreveu uma dedicatória que é, ao mesmo tempo, uma tão bela quanto gentil declaração de amor. Devido à forma como se encontra a faixa, parecendo jogada ali sobre o caderno com displicência, algumas palavras não aparecem e outras ficaram ilegíveis. Contudo, são interpretáveis e conteriam o seguinte: Pour Amalita, a elle sincèrement le doux coeur de mon âme. Guig. A primeira palavra Pour e metade da segunta Amal não aparecem, porque estão na parte da fita dobrada sob a pauta, portanto invisíveis a nós. No vão da telha formada pelo caderno aparecem bem nítidas as palavras: ita, a elle sin, mas a sequência, que seria cèrement le, está escondida sob parte das folhas mais próximas de nós; e mais abaixo continua o restante da frase: doux coeur de mon âme. Guig. Antes cheguei a pensar que houvesse a palavra triste no lugar de Guig; mas depois me convenci de que era mesmo a primeira sílaba de seu nome, como às vezes assinava bilhetes e mesmo um ou outro quadro. Temos aqui, portanto, uma sutil declaração de amor assinada, com a destinatária e texto sucinto, mas bastante expressivo.
Aí estão, portanto, confrontando-se e dialogando em sublime linguagem musical, no primeiro plano, à nossa esquerda, a própria Amalita transformada em símbolos, e, à direita, Santa Cecília concentrada em sua profunda mensagem de pureza e desprendimento. Na abertura entre elas mostram-se essas figuras algo enigmáticas, ocupando o espaço que vai de trás do primeiro plano às rochas do fundo. Lélia Coelho Frota viu aí a possibilidade de estar havendo uma cena pagã, coisa que não se pode descartar, porquanto, no meu entender, essas figuras são uma referência à vida da Mártir. O jovem de pé, seminu, encostado a um bloco da rocha, seria Valeriano, a quem os pais da moça a prometeram; Cecília, figurada também seminua à frente do moço, nada pôde fazer e deixou o casamento acontecer. Entretanto, explicou ao noivo que fizera votos de castidade em face do Cristianismo, coisa que ele, também convertido, respeitou. Então, devido às suas atividades de difusão da nova crença e de caridade, acabaram sendo presos pela guarda romana e sacrificados por volta do ano 178. Aquela figura menorzinha no meio das demais, concentrada nos acordes emitidos pelo piano dedilhado pela Santa, a meu ver representa a própria Amalita, espiritualmente entregue àquilo de que mais gostava na vida: a música, sua real vocação. A nudez daqueles corpos, para o Cristianismo, é um símbolo de pureza do espírito. Contudo este conjunto de pessoas romanas despidas não deixa de ser uma referência ao paganismo e à vida anterior da ‘patrícia romana’ que Cecília fora.
Ou então toda esta simbologia empregada por Guignard para estruturar a composição deste quadro, não seria apenas um subterfúgio para, com a magia dos pincéis e das tintas, criar o retrato espiritual votivo de sua amada? Eis aí uma opinião a ser ponderada.
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