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OBRAS IMPORTANTES DE GUIGNARD EM DESTAQUE
COM A ANÁLISE DO PROFESSOR PIERRE SANTOS
Via Sacra, 5ª de 14 estações: osm, 005-60, 40 X 40 cm, Simão Cireneu ajuda Cristo a carregar a cruz.
Feito prisioneiro, Cristo foi entregue, no Sinédrio, ao Sumo Sacerdote judaico Caifás. Este submeteu-o a cansativos interrogatórios e, não vendo culpa no homem, passou-o às mãos de Pôncio Pilatos, Prefeito da Província Romana da Judeia, a quem cabia o julgamento, adiantando que “é melhor um homem morrer pelo Estado, do que este por ele”. Esta frase, de certa maneira, já era uma espécie de solução para acalmar a turba agitada, que pedia aos berros a crucificação do prisioneiro. Pilatos, tentando fazer uma troca de castigos, mandou que se submetesse o homem ao flagelo. Cristo foi barbaramente açoitado com chicotes de tiras de couro, tendo pedaços de ossos de cordeiro e chumbo em barrete nas pontas. Depois os soldados, que a todo o tempo dele escarneciam e nele escarravam, improvisaram uma coroa tirada de uma trepadeira bem espinhosa e com porretadas fizeram-na entrar-lhe pelo crânio. Então, o chefe dos soldados, para completar a zombaria, disse ao prisioneiro: “Já que tu és o rei dos judeus (povo este que não pertencia ao seu séquito), toma o teu cetro”, e enfiou-lhe entre as mãos um ramo de cana verde. Para completar, acharam lá em algum lugar do palácio velho capote cor púrpura já imprestável e o jogaram em seus ombros, cobrindo com ele seu corpo já bastante ensanguentado.
Guignard apreendeu sua obra no momento psicológico exato em que Cristo é largado num lugar do palácio, jogado sobre pequeno tamborete, já que não aguentava mais ficar de pé, onde cada componente da multidão em fila pudesse passar por ali e vê-lo bem de perto, oportunidade em que os escárnios, já agora por parte do público, continuavam a todo vapor.
Pilatos então quis saber a opinião do público sobre o homem já tão maltratado, ao que a turba continuou gritando a favor da sua crucificação. Aí Pilatos lançou mão da última cartada, pois, sendo época de Páscoa, algum prisioneiro podia ser solto. Então pôs frente a frente o ladrão desclassificado chamado Barrabás e Jesus. O povo libertou o ladrão e continuou a pedir a crucificação para o outro. O Prefeito então compreendeu que qualquer tentativa de libertar aquele homem, no qual não via nada que o desabonasse, mandou buscar uma bacia d’água e enfiou as mãos nela, dizendo que as lavava no sangue daquele justo, e sentenciou para o prisioneiro a morte na cruz, para o que logo o arrastaram.
Cristo aí está, sentado num tamborete, tendo nos ombros um velho manto vermelho púrpura, numa parte de corredor do palácio de Pilatos, de costas para uma janela que dá para o indistinguível, as cortinas também da cor púrpura abertas, à espera de seu julgamento. Traz na cabeça a terrível coroa de espinhos e entre as mãos amarradas sobre as pernas o ‘cetro’ de Rei dos Judeus, que soe ser um ramo de cana verde. Os pés esqueléticos descansam um sobre o outro no tapete estendido num chão feito de ladrilhos amarelos e azuis distribuídos em forma de xadrez.
Todavia, o mais espantoso de tudo, no que o pintor caprichou, é o semblante do condenado, olhos e faces cobertos pelo sangue, derramando pelo olhar cansaço e estupor e, acima de tudo, espanto de quem não acredita que tudo aquilo esteja acontecendo e com excesso.
No final de 1959, Guignard recebeu das Senhoras Elba Sette Câmara e Lúcia Flexa de Lima – pessoas importantes da sociedade carioca da época – a encomenda de uma Via Sacra composta de 14 unidades. Os quadros ficariam expostos, por empréstimo, na Capela São Daniel, em Manguinhos, na zona note do Rio de Janeiro, projetada por Oscar Niemeyer, a qual tinha acabado de ser construída dias antes de sua inauguração, marcada para o dia 17 de janeiro de 1960. Isto, portanto, quer dizer que o mestre tinha um prazo para lá de exíguo para atender àquela encomenda.
O artista não titubeou: passou a tarde toda daquele dia, horas e horas a fio, lendo e se informando sobre a Via Sacra. À noite, (como o que mais o deixou emocionado foi a cena da Vª Estação, qual seja aquela na qual alguém, sensibilizado – isto na interpretação do pintor – pelo sofrimento de Jesus, se dispôs a colocar sobre o próprio ombro a base do madeiro, a fim de ajuda-lo um pouco a levar no caminho do Calvário a pesada cruz), à noite, repito, pôs-se a pintar a óleo, numa superfície de papelão de trinta e dois por quarenta e oito centímetros, aquela cena, só que colocou um soldado como o ajudante. Aí, no dia seguinte alguém lhe chamou a atenção para o equívoco. Assim, quando foi fazer a pintura definitiva, pôs o homem escolhido ao acaso pelos soldados no meio da multidão para aquela tarefa, cujo homem afinal era o Simão Cireneu que aparece no quadro com roupa diferente da dos soldados, de blusa amarela e saiote escuro.
Aquele trabalho experimental resultou numa pintura muito bem composta, com sábia distribuição dos elementos formais e das as cores usadas, superior mesmo, creio eu, ao quadro definitivo de 40 por 40 cm, cujo suporte quadrado criou limites para a composição, que ficou mais espontânea no estudo desenvolvido numa superfície retangular de 32 por 48 cm.
No estudo, em um areal que ocupa um pouco mais que a metade da superfície total, dispõem-se dezenove soldados, cada qual com uma lança, Cristo com sua cruz no ombro esquerdo e dezenove pessoas, todas de costas para nós, bem em baixo, no primeiríssimo plano, representando a multidão que seguia o cortejo. Na pintura definitiva há apenas treze soldados, Cristo e a cruz e só quatro indivíduos representando o povo. Na parte superior, a verde esplanada e o céu ameaçador cheio de nuvens pesadas são mais comunicativos do que como foram feitos no outro quadro, convenhamos.
No dia seguinte tomou conhecimento do tamanho exato previsto para cada unidade – 40 X 40 cm – e foi apressado ao seu marceneiro a fim de encomendar e já trazer consigo as 14 tábuas e pôs mãos às obras. Como não houve tempo para fazer mais esboços, baseou-se naquele pronto para definir ambientação e tipologia, quando coubessem, e inventando outras quando necessárias. Assim, foi pintando quadro por quadro o mais rápido que pôde.
No final, o resultado foi esplêndido e dois dias antes do prazo lá estava ele, em companhia de Dona Elba, pendurando a Via Sacra na Capela São Daniel, ali colocada à guisa de empréstimo por tempo indeterminado, segundo consta, uma vez que as duas senhoras as quais encomendaram a obra e por ela pagaram eram as proprietárias. A capela foi inaugurada no dia 17 de janeiro de 1960, como previsto, com a presença do então Presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Uma vez inaugurada, a igrejinha foi entregue aos habitantes de Manguinhos. Contudo, ao que consta, nenhum órgão governamental previu dotação orçamentária, mesmo pequena, para cobrir as suas necessidades como manutenção e demais contingências, deixando-a ao Deus dará. Por causa disto, aquela pequena casa de orações começou a ressentir-se e, sem recursos, se viu cada vez mais sufocada e comprometida, sobretudo em decorrência das intempéries. Os moradores do bairro já a consideravam, fazia tempo, em estado de calamidade.
A notícia desse desamparo não demorou a circular. Por este motivo, Dona Lúcia Flexa de Lima, tomando conhecimento disso tudo e ponderando bem a respeito, isto cinco anos após a inauguração, tomou de modo radial uma decisão: foi até à Capela de Manguinhos e de lá retirou as 14 estações da Via Sacra pintada por mestre Guignard, tirando-a dos olhos do mundo. A meu ver, foi uma providência necessária, porquanto, não a tivesse a Madame a recolhido, será que ela hoje ainda existiria? Quando nada, seu gesto preservou a obra! Consta que, em 1970, Dona Elba vendeu a sua parte ao banqueiro Antônio José Carneiro, que a conservou com dedicação.
Cerca de quase meio século depois de toda essa história, mais exatamente em 2014, as 14 peças da Via Sacra de Guignard foram cedidas, por empréstimo, para participarem de grande retrospectiva dos trabalhos do mestre, que teve lugar no Museu de Belas Artes de São Paulo. Esta exposição foi incrivelmente visitada, onde o público pôde admirar tais obras há muito sumidas, as quais, acabada a mostra, voltaram ao seu lugar.
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