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OBRAS IMPORTANTES DE GUIGNARD EM DESTAQUE
COM A ANÁLISE DO PROFESSOR PIERRE SANTOS
Felicitas Barreto, 1931, 001-31, ost, 87 X 70 cm.
Guignard fez esta pintura (025) no início do segundo semestre daquele ano e nela aplicou toda a sua ciência pictórica e inusitado desvelo, que só vinte por cento, se tanto, de sua lavra mereceram. O mestre tinha tanta experiência na realização de retratos, que, em geral, uma seção de três a cinco horas bastava, não raro duas seções; excepcionalmente, aparecia algum, que exigia mais de si, como este em foco, para cuja execução Guignard levou dias e muitas seções. Ele nunca se esqueceu deste quadro e, sempre que ia dar aula sobre veladura, citava-o em classe, contando que espécie de dificuldades teve para realizá-lo, a fim de aplainar os futuros caminhos de seus alunos. Fico pensando como deve ter sido demorado, exigindo grande sutileza na aplicação prática, fazer este casaco na cor marrom escuro carregada! Ele contava que teve de parar por dois dias, ir ao comércio comprar tintas especiais e experimentá-las em casa, para só então voltar à carga. Se estivesse fazendo o quadro no Velho Mundo, afeito como estava à luz europeia, teria sido mais fácil e rápido; mas à luminosidade tropical tudo muda, as cores são outras, mais ricas, luminosas e transparentes, tendo que ser mais complexos e exigentes os recursos a empregar-se, principalmente em se tratando de um retrato feito ao ar livre. Não se vá concluir daí que um pintor, que faz seus quadros à luz dos trópicos, seja superior ao que os faz à luz europeia. Não se trata disso, mas sim de adaptação. Se fosse o contrário e Guignard tivesse ido daqui para a Alemanha, já concluídos os seus estudos e como artista feito, lá iria ter as mesmas dificuldades de adaptação, porque este detalhe de observação e execução de pinturas nestas circunstâncias não diz respeito à qualidade e sim à técnica pictórica.
O mestre achava bom ter tais dificuldades, pois, a cada problema assim ia aprendendo e cada quadro era um desafio, às vezes maior, como este, às vezes menor. A demora também o incomodava ante o incômodo da modelo: Guignard soube que a própria Felícitas reclamou às amigas, à época, dizendo que não estava aguentando mais ficar pousando para aquele retrato, horas na mesma posição. É até possível que a expressão final de seu rosto nos comunique, de maneira velada, este desconforto.
Mas afinal aí está a jovem mulher... Mulher? Não: Rainha... Deusa loira, poderosa, consciente disto, sentada em seu trono, que soe ser uma poltrona, fitando-nos com seus olhos verdes (ou seriam azuis?), como quem diz: Eis-me aqui! Adorem-me! A figura está perfeitamente centralizada e a regência da disposição de formas e pesos fica por conta de braços e mãos em posição não simétrica: o direito faz um ângulo terminado no pulso, onde se quebra o movimento da mão, e o esquerdo uma quase imperceptível curva, acentuada pela mão. Será que é preciso chamar a atenção para a elegância e a beleza de mãos e dedos, que estão equidistantes da flor unida a um cinto azul de pano? Guardadas as proporções significantes de moção formal, a força desta flor é tão importante, quanto a cabeça da deusa loira, com a diferença de que esta atrai e devolve à circulação a totalidade dos empuxos de tensão composicional, enquanto a flor desempenha o mesmo papel, porém restrito à área inferior do quadro, onde a mesma está inserida. Tal distinção é tão óbvia, que, quando alguém encara esta pintura, seu olhar vai direto para a cabeça, a face e os olhos desta mulher, que parecem imã, primeiros elementos a serem vistos, os quais, após algum tempo, induzem a pessoa a correr a visão para baixo, para a flor que se encontra na linha da cintura, segunda visualização, a partir de onde a leitura da obra continua.
Assim, o espectador visualiza, a partir da flor, a saia do vestido feito com tecido leve de fundo bege claro, sobre o qual se passou, sem nenhuma complicação, a ligeira veladura azul claro. Vê a seguir, acima da flor, a blusa do vestido da cor da pele, porém mais manchada, enquanto nas mãos e no colo a cor da pele é mais uniforme; daí se chega ao rosto, bem mais claro e luminoso, valorizando empaticamente, por causa do contraste, os cabelos aloirados substanciados por veladura mais difícil, e sendo valorizado por eles, numa troca de valores, em que ficam envolvidos cachos, franjas, nuances, olhos, sobrancelhas, nariz, boca (como é importante esta boca, pintada com o tom de vermelho alaranjado mais quente do quadro!) e linha do queixo.
Os cabelos cacheados sobre os ombros atraem agora nossa atenção e nos conduzem à visualização das mangas do casaco de veludo, desenvolvidas numa sequência de dobras reveladas e definidas por intrincada veladura em tom marrom escuro, como já se mencionou, inclusive na parte frontal do casaco de corte tão moderno, que mesmo hoje estaria na moda. Então, após novo passeio pela base do quadro, voltamos a observar a veladura da saia, a cor de base do pequeno buquê e a tonalidade do cinto de pano e notamos que a poltrona lhes é parente e está perfeitamente integrada à composição, quando circunda o corpo da deusa loira, protegendo-a.
Aí está detalhado todo o primeiro plano. Mas agora nos chamam a atenção os dois pequenos campos vermelhos arroxeados bem na base, aos lados da poltrona e nos perguntamos com surpresa o que seria isto. Então nos damos conta de que se trata de uma esplanada, no topo de alto morro, para além do qual há uma ladeira mais ou menos extensa, com terminal acinzentado de um lado e alaranjado do outro, onde se erguem palmeiras. Esplanada? Topo de morro? É exatamente isto. Este fundo de sustentação dos fatos plásticos, em sua extensão, é imaginário, pura invenção do artista. Quando nosso olhar passeia pelo quadro pela primeira vez, já estamos tão acostumados com os retratos feitos pelo artista com janelas, sacadas ou alpendres abrindo-se sobre paisagem de fundo, que sequer nos perguntamos a respeito da paisagem cheia de pequenos picos típicos das vizinhanças da cidade do Rio de Janeiro, a ocupar grande extensão de território. Mas quando notamos que não há janela ou alpendre, compreendemos também que a poltrona, onde a jovem mulher está sentada no quadro, mas não na realidade, foi posta na referida esplanada para além da qual, lá em baixo, se espraiam pequenos picos piramidais em determinadas direções, até se confundirem, em decorrência de semelhança do colorido, com o céu lá em cima, onde o espaço terrestre e o celeste se harmonizam.
Sem dúvida, alguém que estivesse percorrendo estas linhas, em lendo sobre os recursos composicionais e pictóricos aqui descritos com minúcias, gostaria de perguntar: será que o artista, enquanto pintava este quadro, ficava o tempo todo pensando nas soluções para todos esses problemas? Claro que não – responder-lhe-ia – um artista jamais poderia ficar escravo de uma ‘gramática’ de fazer arte, sob pena de perder-se em suas complicadas malhas. Um grande pintor como Guignard, sobejamente afeito após anos e anos de experiência ao enfrentamento desses problemas, enquanto pintava e à medida que eles apareciam, ia assimilando-os como que por osmose e solucionando-os automaticamente, sem ter que ficar matutando sobre como resolvê-los, guiado apenas pelos ritmos internos, que o orientavam no imediato de cada situação. Só se detinha para pensar, quando algum problema novo aparecia, demandando soluções que saiam do ordinário, como no caso do casaco de veludo já explicado, cuja solução requereu determinado tempo e cuja execução requereu outro tanto.
Enfim, aí está, lindo, imponente, majestoso, o retrato de Felícitas Barreto, das pinturas mais fortes de quantas pintou e de que tanto se orgulhava!
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