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OBRAS IMPORTANTES DE GUIGNARD EM DESTAQUE
COM A ANÁLISE DO PROFESSOR PIERRE SANTOS
Fazenda Boa Vista, de Minas, 1960, 003-60, osm, 26 X 73 cm.
Admiremos agora esta paisagem infinita tanto em sentido de amplidão, quanto em sentido de captação dos ritmos da vida, que aí flui de maneira simples e comovente, colocando esta pintura, sem sombra de dúvida, entre as melhores da lavra de Alberto da Veiga Guignard.
Senão, vejamos. Tudo se passa numa quente manhã de domingo, o tempo mormacento meio abafado, com o sol escondido atrás das nuvens, e tanto, que não faz sombras. Um grupo de pessoas parece disposto a pegar a estrada que as levará à vila próxima, para assistirem à missa e passearem um pouco; a maioria, porém, prefere ficar ali mesmo naquele espaço aberto, conversando e se divertindo até a hora do almoço e, após ele, até a hora da merecida sesta, que as renove e prepare para a faina do dia seguinte. Vida simples, vida singela, sem grandes emoções e nada de imprevisível, mas feliz, sem contratempos, ali sorvida em seu limite, nos parâmetros da simplicidade.
Descubramos agora como Guignard intuiu a composição deste quadro. Tudo nele faz transitar a nossa atenção da direita para a esquerda, não só devido à intenção direcional dos figurantes, que aí aparecem, mas também devido ao fluxo composicional, que insistentemente indica este rumo. Por outro lado, o acúmulo de nuvens, os dois coqueiros, únicas árvores de tamanho maior que há naquele espaço, e as construções relativamente grandes, todas essas formas dispostas na faixa da direita, criam um campo muito intenso de peso, o que poderia deixar a composição desequilibrada. Entretanto, o pintor lançou mão de alguns recursos, que evitam esta ameaça. Em primeiro lugar, limitou o referido campo de peso a um terço de todo o espaço, exatamente o que fica ali à direita e desenvolveu o restante do quadro nos outros dois terços, o que já alivia a possibilidade de desequilíbrio, mas ainda não resolve, dada a intensidade de peso da primeira zona. Para conseguir afinal o necessário equilíbrio, pintou nuvens mais pesadas à esquerda, com azul mais intenso, e, magicamente, pôs bem ali no cantinho da esquerda um homem montado em seu burrico, de maneira bem nítida e maior, porque mais próximo de nós, à frente de uma touceira, o que completa em termos de peso o equilíbrio do quadro, por usar aí a solução a que se dá o nome de “efeito zanga-burrinha”.
Depois, podia dispor os figurantes como bem quisesse – e o fez como se estivessem num desfile, pois acima de tudo interessava-lhe pintar a alegria e a singeleza que deviam existir naquele domingo, mas, igualmente, captar o lento desenvolvimento, que também leva nossa visão da direita para a esquerda. Tudo começa com a família do capataz, ele de pé, um pouco aquém da porteira, de blusa rosa claro e calça azul, tendo ali perto a mulher, quatro filhos e duas galinhas brancas, em repouso ali na grama. À frente, quatro pessoas em grupo proseiam. Mais atrás, dois indivíduos de roupa branca observam. Um pouco adiante deles estão duas galinhas pretas e uma jovem pensativa de saia marrom e blusa vermelha. Ao seu lado, um homem de roupa clara, o qual, enquanto forma, é importantíssimo nesta composição, o que veremos mais adiante, carrega um objeto amarelo claro grande, que não sei identificar, embora pareça uma pipa. À frente dele, uma galinha preta, um indivíduo com a mão esquerda no bolso do paletó escuro, o burro e seu montador em diagonal, o homem de camisa amarela e bermuda azul, outra galinha preta e, lá atrás um indivíduo de calça azul e blusa bem esbranquiçada. Cá na frente, um rapaz de roupa clara mexe numa geringonça, sem dúvida uma espécie de máquina usada na fazenda. Adiante e mais atrás dois grupos de pessoas, as três primeiras de branco, dispostas em ângulo com o vértice acima delas, e os outros três de laranja, também em ângulo, com o vértice abaixo. Ora, estas seis figuras estão postas propositadamente numa formação definida, o motivo da qual veremos daqui a pouco. Finalmente, ao lado desses dois grupos, já no terminal da leitura do desfile, um homem de camisa escura e calça amarela segura alguma coisa com a mão esquerda, atrás de um peão que cavalga o seu burrinho, cuja importância para o equilíbrio do quadro já foi realçada. Observemos agora algo interessante: os únicos animais que aí aparecem são as seis galinhas e os dois burricos; senti falta de pelo menos um cachorrinho, quando uma fazenda sem pelo menos um cachorrinho é, no mínimo, uma coisa estranha.
Fiz questão de descrever pormenorizadamente a posição de cada um dos figurantes, para mostrar que, embora a disposição de todos os componentes pareça estar resolvida de maneira aleatória, assim não é. Quem tiver acompanhado linearmente a minha descrição do posicionamento de cada figurante, deve ter compreendido que todos os elementos do friso de seres vivos estão dispostos num longo e bem claro ziguezague (o que explica a formação das seis figuras quase ao fim do cortejo, atrás do último burrico, acintosamente situadas como uma das partes do referido ziguezague). O mestre lançou mão deste recurso para dar movimento ao desfile, em oposição ao todo daquela temática de paisagem parada no tempo, tranquila e despojada, beirando à monotonia não fora o conjunto de seres que a habitam, e tanto, que, em decorrência da presença deles, certa aragem vagarosa e fresca perpassa pela paisagem, humanizando-a, e nós, espectadores, até chegamos a senti-la nas faces.
Falei acima que o rapaz de roupa clara, que segura um objeto amarelo claro, talvez uma pipa, é importante para a composição do quadro, sem o qual esta perderia seu eixo. Ora, se traçarmos uma linha vertical, que divida o quadro no meio, de alto a baixo, ela passará exatamente no meio de sua perna esquerda, o que mostra a centralização da figura, dividindo como um eixo a superfície em duas. Ora, isso é tão flagrante, que treze figuras humanas aparecem aí antes dele, e mais treze, depois; isto nos mostra que, com ele, vinte e sete figurantes habitam esta paisagem, sendo ele o centro, o eixo, o fiel da balança.
Por outro lado, aqui temos um céu carregado de nuvens, entre as quais o azul celeste transparece aqui e ali, escondendo o próprio sol, o que aumenta a sensação de mormaço e abafamento. Esta se vê ampliada, quando notamos que este céu ocupa quase dois terços da superfície pintada, à maneira flamenga, como já vimos em outra análise, o que aquece não apenas o ambiente, mas também a bonomia das pessoas que neste descampado vão passando o tempo e se divertindo, para as quais, em sua simplicidade, tudo é alegria, sobretudo num dia de folga.
Quando nosso mestre postou seu cavalete perante este panorama e pôs-se a observá-lo, procurando captar todos os seus pormenores, já elaborando mentalmente a espécie de composição que iria empregar, formalizando sua linguagem, queria sem dúvida registrá-lo; todavia, não como objetivo maior naquela oportunidade, como já lhe havia acontecido tantas vezes quando pintava paisagens por si mesmas, mas sim como simples meio continente da felicidade que anima esses colonos em dias para eles especiais – porque seu verdadeiro propósito aí é evidenciar aos olhos todo o bem-estar que as pessoas carregam dentro de si. Afinal, para além das coisas aparentes, existe aí algo que não se representa numa determinada forma, mas que está em toda a superfície pintada: a alegria da vida.
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